Se tivessem acreditado na minha brincadeira de dizer verdades teriam ouvido as verdades que teimo em dizer a brincar, falei muitas vezes como um palhaço mas jamais duvidei da sinceridade da plateia que sorria. Charles Chaplin

Tornámo-nos eternamente responsáveis por aquilo que cativamos. Antoine de Saint-Exupéry

A cabeça que se não volta para os horizontes sumidos não contém nem pensamento nem amor. Victor Hugo

Não importa o que fizeram connosco, importa o que fazemos com aquilo que nos fizeram. JP Sartre

quarta-feira, 30 de abril de 2014

quando os livros... # 5

Esses rapazes, de boné ao contrário, barbas mal feitas, roupas sujas e olhar incómodo, arrumam carros num estilo indolente, fazendo já parte de uma paisagem urbana que alimenta tensões e vive em conflito.

O espectáculo visível convida à censura e a um eventual aproveitamento ideológico ou politico.

O invisível continua a alimentar as tensões e os conflitos, que um dia poderão servir de suporte a ódios mais violentos.

Esses rapazes, sem olhar triste ou contente, tão urbanos como os outros urbanos, mas visivelmente diferentes, serão o bode expiatório de muitas frustrações, e um objecto político perfeito para personificar uma qualquer “causa” num mundo de escassas “causas”.

Quando, por vezes, algumas pessoas perguntam a minha opinião sobre “o problema dos drogados”, costumo dizer que “eles são apenas o lado B de um disco que vende muito…” mas muitas pessoas não me entendem, pois aquilo que eu digo não condiz com o que é visível.

A raiz de uma árvore não se vê, e se a árvore for bonita será provavelmente o suficiente para colher a nossa admiração e para não duvidarmos da sua saúde e pujança.
É fácil pensar que um drogado é um infeliz ou um diabo, mas poucas vezes nos dispomos a procurar o lado invisível, a raiz, a pessoa, a história com as suas realizações e desrealizações, que constroem o sentido de um destino…
Este pequeno livro que me propus escrever tem apenas por objectivo o relato cru de algumas histórias (pedaços de histórias) que fui ouvindo, enquanto psiquiatra a trabalhar na área da toxicodependência.

Não se trata de um livro científico porque simplesmente não me apetece ser estatístico. Não pretendo dar respostas, nem apontar os caminhos para alimentar os superegos dos mais intolerantes. Tão pouco quero fazer a apologia do toxicodependente traumatizado e “coitadinho”, pois penso que, em grande número de casos, a toxicodependência é apenas uma das variantes da pobreza possível…
Acredito que a realidade é, muitas vezes, crua e destituída de justiça, sendo a Natureza essencialmente desigual.
Claro que é sempre útil ter uma utopia pois ela dá-nos esperança. Desde que nos diferenciámos dos outros primatas, essencialmente à custa dos lobos frontais do cérebro, começando a acreditar em coisas tão estranhas como o livre-arbitrío, tornámo-nos então ainda mais dependentes e ritualizados e coisodependentes e humanodependentes e toxicodependentes e utopicodependentes e etc…dependentes!
É costume dizer-se que a virtude está no meio… mais isso é apenas por comodismo ou covardia, porque a virtude pode estar em qualquer parte, incluindo nos estremos, embora dê sempre jeito, sendo menos trabalhoso e arriscado, procurá-la ou fixioná-la no meio…!
Para ser mais concreto faço as seguintes perguntas: – Serão os que sofrem menos os mais felizes? – Será que os que nunca perdem porque nunca jogam são mais válidos do que aqueles que vão a jogo arriscando-se a perder ou ganhar?
Muita gente não se “droga” não por possuir maior clareza de espírito ou auto conhecimento, mas apenas por “preferir” outras doenças moralmente mais válidas.
Outra gente, nunca pára de se drogar porque simplesmente tem medo e não é aventureira, a sua “normalidade” o seu “caminho do meio” é aquele que não ousa procurar a virtude no outro extremo!
Alguns doentes perguntam-me com angústia se são normais, outros sabem que não o são, mas querem que eu os drogue (legalmente) para o poderem ser…
Os normais, os verdadeiros, esses, é claro, não existem, pois a normalidade, como todos sabem, é pura abstracção matemática!...
A psiquiatria tem vindo a tornar-se cada vez mais estatística e então aquilo que era parecido ficou diferente e o que era diferente ficou parecido… refiro-me à evolução das classificações dos distúrbios mentais (e aos seus tratamentos).
Também elas (classificações das doenças mentais) deixaram de procurar o lado invisível da doença, contagiadas pela visibilidade desta nossa moda do 3.º milénio.
Por estes caminhos, vamos ficando com mais pele e menos coração, ficamos com mais factos e menos sentido para eles!...
Desta forma, ficamos com mais rapazes de boné ao contrário, mal barbeados e sujos, a arrumar carros, julgando logo que urge referenciá-los, tratá-los, e exterminá-los, para sermos todos felizes, iguais e assépticos.
Porque não acredito nisto, caro leitor, vou contar-lhe algumas histórias… histórias que “os rapazes da droga” me contaram…
Hernâni Carqueja in Os Rapazes da Droga

4 comentários:

  1. Já conseguiste despertar-me a atenção. :)
    Tenho de anotar esse nome. beijinho

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    Respostas
    1. Gostei bastante, e a forma como veio parar a mim é uma história engraçada, deixou-me a pensar na realidade que é a frase - nem todos os livros são para todas as cabeças! ;)

      Beijinhos

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